São apontadas recorrentemente várias doenças ao sistema judicial português.
Este status quo tem originado debates circunstanciais e dispersos pela sociedade portuguesa, os quais têm contribuído mais para criar dúvidas e desconfianças em relação ao modo como se administra a justiça em Portugal, do que propriamente para gerar consensos.
O que ainda não assistimos foi ver as forças políticas, as universidades, magistrados, advogados, técnicos e especialistas e sociedade civil, todos sentados à mesma mesa a discutir os problemas que afectam a justiça em Portugal.
Não vimos ainda os protagonistas desta história com vontade e coragem para o fazer.
A questão não é de todo despicienda. Por isso, é importante que se encete urgentemente um amplo debate no país com vista a, realística e desapaixonadamente, diagnosticar as doenças da justiça e as suas causas, para depois se definirem as respectivas acções correctivas, os responsáveis pela implementação dessas acções e os prazos para a sua execução.
Paralelamente, deve ser constituída uma comissão que acompanhe a implementação dessas medidas, que avalie a sua eficácia e que relate os resultados que se vão produzindo.
De entre um conjunto vasto de doenças, esse debate para uma reforma estrutural e séria da nossa justiça deve, designadamente, abranger os seguintes factos:
- O facto de a justiça ser pouco célere;
- O facto de haver uma justiça para ricos e outra para pobres;
- O facto de haver interferência do poder político no poder judicial, e vice-versa;
- O facto de haver uma corporativização desmesurada das magistraturas, quer judicial, quer do ministério Público;
- O facto de existirem associações sócio-profissionais afectas a ambas as magistraturas;
- O facto de o sistema de nomeação, colocação, transferência e promoção, assim como o exercício da acção disciplinar, quer dos juízes dos tribunais judiciais, quer dos magistrados do ministério público, serem exclusivamente da competência, respectivamente, do Conselho Superior da Magistratura e da Procuradoria-Geral da República;
- O facto de as decisões dos tribunais não serem muitas vezes suficientemente fundamentadas, tal como determina a constituição e a lei;
- O facto de o princípio da independência dos tribunais ser muitas vezes posto em causa pelos vários poderes instituídos, mormente o político, o económico e o da comunicação social;
- O facto de se consagrar como regra geral que os juízes são inamovíveis, não podendo ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos;
- O facto de os juízes, regra geral, não poderem ser responsabilizados pelas suas decisões;
- O facto de se pôr frequentemente em causa a autonomia de que goza o ministério público;
- O facto de certos julgamentos, ditos mediáticos, mais depressa serem esmiuçados na praça pública do que nos próprios tribunais;
- O facto de se violar, reiterada e impunemente, o segredo de justiça;
- O facto de se fazerem reformas penais, civis e processuais que na prática não dão em nada;
- O facto de existir legislação a mais em Portugal e, não raro, contraditória e dilatória;
- O facto de o sistema judicial português estar impregnado de legislação caduca, complexa, ineficaz e desajustada às novas realidades do país;
- O facto de certo poder judicial pensar que vive numa República de Juízes em vez de numa Democracia Liberal (também um facto para o qual, já por diversas vezes, muita gente chamou a atenção);
- O facto de o princípio da presunção de inocência dos arguidos ser algumas vezes preterido a favor de interesses superiores que não os da própria justiça;
- O facto de termos um sistema judicial excessivamente garantístico, que conduz à utilização de múltiplos expedientes dilatórios, os quais, muitas vezes, apenas visam entravar o normal andamento dos processos e protelar as decisões;
- O facto de, não raras vezes, serem as magistraturas e os seus altos dirigentes a chamarem a si a função legislativa, opinando e propondo a criação de determinada legislação, quando se sabe que essa função compete à Assembleia da República;
- (…).
Como é evidente, a lista de factos não se esgota nos que apontámos acima.
Também não foi nossa preocupação, neste momento, apresentar uma receita infalível que curasse definitivamente (será possível?) a nossa doente.
É que também duvidamos que exista um remédio milagroso que, de uma só assentada, ponha a nossa doente a andar e, mais importante, a livre completamente de uma recaída.
Perante um quadro clínico complexo e exigente como este, em que a nossa justiça nos surge terrivelmente estilhaçada, inclinamo-nos mais para um conjunto de tratamentos que actuem especificamente em cada uma das zonas afectadas.
Mesmo que depois do tratamento a justiça nos pareça totalmente restabelecida, não há que descurar nunca o seu acompanhamento periódico, não vá a nossa doente apanhar uma corrente de ar e voltar a cair numa cama de hospital.
É que, como temos vindo a assistir, às vezes um simples resfriado pode transformar-se numa valente pneumonia.