No tempo dividido
E agora ó Deus que vos direi de mim?
Tardes inertes morrem no jardim.
Esqueci-me de vós e sem memória
Caminho nos caminhos onde o tempo
Como um monstro a si próprio se devora.
1 de Dezembro de 2010
No tempo dividido
E agora ó Deus que vos direi de mim?
Tardes inertes morrem no jardim.
Esqueci-me de vós e sem memória
Caminho nos caminhos onde o tempo
Como um monstro a si próprio se devora.
1 de Dezembro de 2010
Porque
Porque os outros se mascaram e tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Liberdade
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
Ausência
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
“Sou eu
pomar de sensações
rituais fugazes
em buscas demais
raízes vazas de emoção
por percorrer a seiva
o corpo da terra
em flor
brotar um filho
em tanta cor e sabor.
Sou eu
filha da terra mãe
que pelo lavrador
me deixo amainar
se o vento não me corre nas veias
se o sol não me queima a pele
e estremeço
com o seu fiel tocar
no meu corpo
ramo de figueira”.
Zézinha D’Almeida e Friends
"Sei que pareço um ladrão,
Mas há muitos que eu conheço,
Que sem parecer o que são,
São aquilo que eu pareço".
Este foi um projecto antigo que nasceu de meia dúzia de jovens albicastrenses que fizeram o favor de expressar a sua veia poética numa altura, 1984, em que fazer poesia, segundo alguns, era um mito e um privilégio de “pessoas letradas”, de homens e mulheres distantes que deveriam viver noutro mundo, quem sabe…
Havia, mesmo assim, vozes novas, nessa praça velha.
No entanto, estes intervenientes fizeram estes escritos a título plural.
Foi uma aposta ganha e um novo desafio através da revelação de pequenas “estórias”.
Foi, por exemplo, a história de um grupo de pessoas que se conheciam do fluir da cidade e do tempo.
Encontravam-se, às vezes, em manifestações culturais diversas: fosse no teatro, nas exposições ou no cinema.
Tinham interesses e necessidades culturais próximas.
Mas, com o tempo, foram descobrindo que tinham algo mais em comum: gostavam, afinal, de poesia.
Alguns tinham já ousado, em edição de autor, contactar com o público; outros, por seu lado, aguardavam pacientemente uma oportunidade.
Houve um dia em que alguém lançou a hipótese de se reunirem e lerem os seus trabalhos.
A ideia, que bom são as ideias, germinou e rapidamente cresceu e foi acto.
Surgiram outros interessados.
Leram-se poemas, trocaram-se sugestões, agarraram-se algumas ideias perdidas.
O convívio sugeriu o contacto directo com o público
O velho celeiro da Ordem de Cristo, ali à Praça Velha – o novo espaço do Grupo de Animação Cultural, Amato Lusitano – foi o primeiro palco.
Foi uma noite quente.
Os novos poetas sentiram-se apoiados.
A ideia de alargar o público foi ganhando força: tentar uma publicação colectiva e continuar a propor Serões com a poesia, naquele ou noutros espaços.
Estiveram na Cadeia de Castelo Branco.
Levaram, com o abraço fraterno, sonhos de liberdade com mais amor. Trouxeram alguma dor no olhar e os ouvidos mais despertos.
A tal publicação colectiva, a Colectânea, aqui está: recolha de vozes, sem idade, exprimindo sensibilidades e olhares diferentes; são registos de emoções, protestos, apreensões, problemas do quotidiano.
Às vezes, simples apontamentos, desabafos, gritos reprimidos…
As VOZES NOVAS aqui estão. Delas não vamos falar, nem dos poemas. Isso é a tarefa dos leitores.
Em jeito de saudação, deixamos aqui um outro aviso à “Navegação” que, hoje, nos apeteceu fazer chegar às vossas mãos:
“Neste rio apressado dentro de mim,
Sou um momento presente, cadente,
Cisne branco, deselegante,
Limo, nenúfar, verde rosa,
Corrente castor,
Que represa o rio que corre em mim”.
Zézinha D’Almeida e Friends
Ode à Paz
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó Paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
Natália Correia, in "Inéditos (1985/1990)"